sábado, 31 de outubro de 2009

Dois Fadistas Monarquicos

Conhecemo-nos no começo da década de 60, quando ela se fazia acompanhar à guitarra por José Nunes, excepcional guitarrista, que nos apresentou em 1964. Mas foi só em 1966, na Taverna do Embuçado, em Alfama, que ficámos amigos, amizade que se manteve até ao fim dos seus dias.
Ter Amália a cantar junto de mim, em redor de uma mesa, com os guitarristas e mais meia dúzia de privilegiados, constituiu uma verdadeira revelação, uma fonte de tal modo inspiradora, que não fora esse fenómeno e jamais teria sido fadista profissional, porque o único fado de que gosto é aquele que ela criou. Sentir a sua emoção bem dentro de mim, encantado pela voz que lhe saía com uma força, uma projecção e uma intenção quase inumanas, com os olhos fixados nos seus, na sua beleza forte, telúrica, bem portuguesa, foi uma sensação absolutamente indescritível, rara e sempre nova de cada vez que se repetiu, em muitas ocasiões, para minha suprema fortuna.
Já quase tudo se disse acerca da pessoa e da artista que Amália foi, vindo de todos os sectores da vida portuguesa, de muitos estrangeiros e dela própria num sem-número de entrevistas que concedeu. Houve, porém, uma sua faceta que me perturbou particularmente, aquela que a fazia meditar recorrentemente na morte e que a fazia dizer coisas tão inesperadas como a que me disse certo dia de 1989, em que veio a minha casa para uma sardinhada tardia. Cumprido o fado das sardinhas teve lugar o outro, com as guitarras a tanger e convidados a cantarolar o que lhes apeteceu, até o mais alto valor presente se levantar e apropriar do Paquito, do Pracana, do Zé Luís ou do Jaime para cantar até ao limite.
Já à noitinha contaram-se anedotas, brejeiras, mas não obscenas (Amália era avessa a palavrões), historietas, ouviu-se música, até que por volta das duas da madrugada ela falou à Lili para lhe trazer a “cassete do Juan Pardo”, que incluía uma canção do conhecido espanhol, “Un fado… Amália”, que ele enviara para a sua editora. Perguntou-me se gostava, disse-lhe que sim, e acrescentei que, sendo um verdadeiro hino à sua pessoa, não lhe ficaria muito bem ser ela a cantá-lo. Concordou e disse-me para eu a decorar, pedido a que acedi sem hesitar, desde que ela obtivesse autorização do Pardo. Ficou então de me enviar uma cópia, o que não sucedeu.
Cinco anos depois, no final de um concerto meu no CCB, desabafou que teria sido a altura ideal para estrear a canção; ripostei-lhe que não recebera a cassete, tendo ela perguntado se a Ana, minha mulher, dissera alguma coisa sobre o assunto. Respondi que não e ela revelou que à saída do tal almoço/jantar/ ceia pedira à Ana que insistisse comigo para eu memorizar os versos, em ordem a cantá-los no dia do seu enterro. Fiquei siderado, disse-lhe que a ideia era tétrica, que eu jamais poderia protagonizar uma tal cena, parecia que não me conhecia, por aí fora. Mas isto diz bem da autêntica obsessão que Amália tinha pela morte, a pontos de encenar o seu próprio funeral…
Como é sabido, existem muitas teorias sobre a origem do Fado, quando, onde, como e com quem nasceu. Resolvi há muito essa questão na minha cabeça: o Fado, tal como o entendemos hoje, apreciamos e cantamos, surgiu na Primavera de 1939, no antigo Retiro da Severa, ali no coração do Bairro Alto, com as guitarras de Armandinho, Jaime Santos e José Marques, e as violas de fado de Santos Moreira, Abel Negrão e Alberto Correia, a acompanharem a voz única e irrepetível de Amália Rodrigues, que então o cantou em público pela vez primeira. Foi uma pena que essa data tenha sido ignorada, apesar de eu ter pugnado pela sua comemoração. Mas não há nada a fazer: no país de Amália gosta-se mais de celebrar a morte e menos a vida.


João Braga

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